ritmo de
"TRE BATUTTE"
A boa notícia de hoje não vem do blog do Stephen Kanitz, mas da minha própria máquina: a partir de hoje, ela tem 2GB. Pode não ser muito, ainda mais para quem pretende trabalhar com som e imagem, mas não deixa de ser uma boa notícia, porque significa que ao menos poderei continuar meus testes com o LMMS, com o MuseScore e com o Frinika. Mas sobre este assunto eu falo outro dia. Antes, deixe-me contar um “causo”."TRE BATUTTE"
OUSADIAS
Quando Stanley Kubrick terminou as filmagens de Laranja Mecânica (lembrando que eu já abordei este assunto num dos meus primeiros posts), havia decidido incluir o Scherzo da Nona Sinfonia de Beethoven na trilha sonora, usando-o como fundo em algumas de suas cenas mais fortes (como, por exemplo, a do quase-suicídio de Alex). A obra de Beethoven parecia encaixar-se como uma luva em seu projeto. Faltava somente escolher uma boa orquestra e um bom condutor para ela. Mas Kubrick, visionário como poucos, percebeu que poderia ir além, aceitando a colaboração inusitada de Wendy Carlos.
E Carlos não fez por menos. A sua interpretação “sintetizada” do Scherzo é incrível, e realça como nunca a dramaticidade do filme – algo que dificilmente se conseguiria com uma leitura convencional da partitura de Beethoven, ainda que realizada pela melhor orquestra que se possa imaginar.
Estariam, assim, perfeitamente justificadas todas as ousadias de Wendy em relação à partitura – exceto uma.
MAS O QUE É RITMO DE TRE BATUTTE?
O assunto pode parecer um pouco técnico demais para um blog, mas seria uma pena não poder tratar dele agora (afinal, ao que tudo indica, descobri que Wendy Carlos - em que pese toda a sua bagagem musical - teria cometido um erro de leitura que ficou perpetuado num dos filmes mais importantes da história do Cinema). A história é a seguinte:
No compasso 177 desse Scherzo, Beethoven acrescentou na partitura a indicação “ritmo de tre batutte”, ou seja, “ritmo de três compassos”. Daí em diante, a música é caracterizada por uma divisão em blocos de TRÊS compassos, em vez dos QUATRO que vinham vigorando desde o início. Por isso, os temas do “fugatto” que se inicia neste momento vão entrando, um após o outro, a cada TRÊS compassos. Até aí, tudo bem: Wendy Carlos estava fazendo um trabalho perfeito.
Alguns compassos depois, chega a vez dos tímpanos surgirem fazendo muito barulho. São intervenções vigorosas, bem beethovenianas. Depois de quatro intervenções - uma a cada TRÊS compassos, por causa do “ritmo de tre batutte" - espera-se pela quinta, mas ela demora a vir, aparecendo um compasso mais tarde que as demais. É que, neste exato momento, Beethoven decide fazer um retorno brusco ao esquema anterior, caracterizado pelos blocos de QUATRO compassos.
Ouça, logo abaixo, um MP3 que eu mesmo preparei, contendo somente o trechinho analisado acima (a partir de uma interpretação exemplar da Filarmônica de Berlim, sob a regência de Herbert von Karajan), e clique no gráfico correspondente, para vê-lo maior. Vale a pena ouvir e ver:
Note no gráfico acima que todas as cinco intervenções dos tímpanos (assinaladas pelos números) estão separadas por três compassos (representados pelos círculos cor-de-rosa com diâmetros iguais, de 24 pixels), exceto a quarta e a quinta intervenções, que estão separadas por QUATRO compassos.
Isso combina perfeitamente com o que se vê no gráfico “piano-roll” que eu mesmo produzi no LMMS (olha só o LMMS já começando a demonstrar a sua utilidade...):
Eu poderia ter mostrado o mesmo trecho acima numa partitura, mas, neste caso (como em muitos outros), o “piano-roll” acaba sendo mais informativo.
Para complicar um pouco mais essa história, Beethoven estabeleceu que essa quinta intervenção dos tímpanos, além de demorar um compasso a mais para ocorrer, deve vir bem mais suave. Mesmo assim, por incrível que pareça, ela não passa despercebida. O motivo disso é justamente a violência com que ocorrem as quatro intervenções anteriores - é como se, por alguns instantes, nossa atenção se desviasse para essa súbita ausência, e assim acabamos percebendo a entrada dos tímpanos, ainda que bem mais fracos e aparentemente fora do tempo.
MISTÉRIO
Na interpretação de Wendy Carlos, porém, não há este atraso de um compasso. A quinta intervenção dos tímpanos ocorre como se ainda estivesse valendo a indicação “ritmo de tre batutte”, isto é, TRÊS compassos depois da quarta intervenção. A razão disso, para mim, é um mistério.
Logo abaixo, eu disponibilizo o MP3 e o gráfico correspondentes ao que acabo de dizer:
Note no gráfico acima que, dessa vez, todas as cinco intervenções dos tímpanos estão separadas por três compassos.
MAS O QUE TERÁ ACONTECIDO?
Eu acho que Wendy Carlos simplesmente se equivocou. Não acredito que ela tenha ignorado o retorno ao ritmo de quatro compassos de forma deliberada, mesmo porque não encontro um único motivo pelo qual ela quisesse tê-lo feito. As outras diferenças em relação à partitura, sim, são propositais, o que fica evidente quando ouvidas em seu contexto, isto é, nas cenas para as quais foram pensadas (a mais notável dessas diferenças está num trecho em que toda a orquestra toca em fortíssimo: Carlos resolve esticar esse trecho além do normal, provavelmente para que tivéssemos uma idéia da sensação de morte iminente que levou Alex a se jogar pela janela...).
Essa discrepância (provavelmente única em toda a discografia de Wendy Carlos) eu já a havia percebido faz algum tempo, mas a decisão de escrever algo sobre ela surgiu quando encontrei o texto abaixo (onde, inclusive, tomei conhecimento de coisas como o "hypermeter" e desse tal de “ritmo de tre batutte”):
It should be mentioned that all this tonal modulation occurs at a point where the manipulation of rhythm also blurs the structure. Here Beethoven acknowledges the concept of "hypermeter"- or implied meter built out of the melodic material itself and existing fairly free of the established rhythmic pattern (see the Scherzo of the Third Symphony for a more piquant example). The bassoon entrance at bar 177 begins with the marked expression "ritmo de tre batutte" or "rhythm of three bars." In other words, the fugue-like structure of the opening returns, but instead of each subsequent theme statement coming four bars apart (see example above) Beethoven rushes things, as it were, by making the entrances here separated by just three bars. The effect is one of unsettling compression. The tympani make their famous loud statements (last example) in this same compressed rhythm scheme, four times. The fifth tympani outburst is delayed by one measure and played softly- in other words, Beethoven returns suddenly to the four-bar scheme- the tympani sound as if they are retreating, diminished in power but still lurking. The "ritmo de tre battute" returns briefly a few bars later, but this is finally put to rest by the tympani themselves, leading to one of the more powerful (though brief) crescendos in Beethoven's music. Concurrent rhythmic and tonal tinkering to this degree had no prescedence in Western music, and sounds innovative to this day.
Para os que quiserem se aprofundar neste e em muitos outros detalhes a respeito da Nona Sinfonia de Beethoven, leia O TEXTO COMPLETO.
Obs: E se tiver um tempinho, assista, mais tarde, ao vídeo completo de onde eu extraí um dos áudios analisados acima:
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