Faz exatamente um ano que a banda inglesa Coldplay lançou o que viria a ser, provavelmente, o mais bem sucedido (e, também, o mais polêmico) álbum de sua carreira. Viva La Vida or Death and All His Friends (título referente a um quadro da artista mexicana Frida Kahlo) obteve um sucesso estrondoso, ganhando três das sete indicações ao Grammy Award que recebeu, entre as quais a de Melhor Canção de Rock, com a faixa Viva La Vida.
Foi merecido? Sim, foi merecido. Confesso, inclusive, que, quando a ouvi pela primeira vez, tive uma agradável sensação de dejàvu. Não, não estou sendo irônico. Sempre tenho dejàvus quando ouço sequências de acordes como a que se repete ao longo dessa música (e que eu comento em detalhes, lá no final deste artigo). Ela flui com tamanha naturalidade que é como se eu já a conhecesse há séculos e séculos. Tomem isso como um elogio.
Tudo ia muito bem até que Joe Satriani, conhecido guitarrista e compositor, decidiu botar a boca no trombone: para ele, o tema principal de Viva La Vida seria uma cópia quase perfeita do tema principal de If I Could Fly, música instrumental de sua autoria. Para os que ainda não sabem do que se trata, ouçam as duas e tirem suas próprias conclusões. Primeiro, Viva La Vida:
Excelente, não? Agora, ouçam If I Could Fly - prestem atenção ao trecho que começa na marca dos 50 segundos:
Grande música, também.
Mas aí veio o Cat Stevens e quis entrar na briga: disse que Foreigner Suite, de sua autoria, tinha sido também plagiada pela banda inglesa. O vídeo abaixo foi preparado especialmente para mostrar uma comparação entre as duas (pulem a parte que fala de Mozart, Armageddon, etc.):
Na minha opinião, o Cat forçou um pouco a barra. Só se ele achou o arranjo orquestral parecido...
Mas, como se não bastassem duas acusações de plágio, veio a terceira, com a banda norte-americana Creaky Boards e sua canção The Songs I Didn’t Write.
Há muito material (textos, vídeos, etc.) na Internet abordando essa encrenca. Uns são contra, outros a favor, e há até mesmo os que ficam em cima do muro. De todo esse material, destaco o seguinte vídeo, por resumir todos os outros que coloquei mais acima, e por servir de introdução ao que direi a seguir:
Faltou o Creaky Boards, não? Nem me dei ao trabalho de procurar a música dessa banda porque, bem antes disso, eles já haviam se retratado, admitindo a possibilidade de que ambas as canções - a deles e a do Coldplay - poderiam ter sido influenciadas pela trilha sonora do video game The Legend of Zelda (???).
Se essa história do vídeo game for verdadeira, trata-se de dois plágios em sequência. Esse encadeamento de plágios, em que “fulano copiou de ciclano, que copiou de beltrano, e assim por diante”, parece ser justamente a tese central do vídeo anterior, e dá o que pensar.
Meus amigos, eu sei que tratar desse assunto é polêmica na certa. Mas, por favor, estejam à vontade para discordar de cada linha que eu escrever.
Em geral, criatividade e plágio são conceitos que, quando colocados lado-a-lado, sugerem uma oposição como a do bem contra o mal, ou a do mocinho contra o bandido. Sinto que há uma simplificação excessiva nessa forma de pensar. Algo me diz, por exemplo, que, se não tomarmos cuidado, daqui a pouco, para cada música de sucesso que se lançar, haverá uma saraivada de acusações de plágio. Só os artistas menos conhecidos escaparão de entrar na roda.
Theodor Adorno, um importante compositor e musicólogo alemão do século XX, sustentava que o uso do plágio é extensivo na música popular (popular music in general employs extensive plagiarism: variety in the musical material occurs in details whereas genuinely original musical content tends to be sparse when compared to classical or art music - clique aqui para ler o documento na íntegra).
Na prática, quase todos os casos de plágio musical de que se tem notícia envolvem trechos relativamente curtos, mas fundamentais para ambas as músicas. A questão é: o que pode, então, ser considerado um trecho suficientemente longo? E se houver uma única nota diferente no meio dele?
Ora, valendo-se de tamanha indefinição, Will Champion, o baterista do ColdPlay, defendeu-se da acusação de Stevens dizendo que “as notas de uma oitava não pertencem a ninguém”.
Coincidentemente (ou não), outro músico famoso já havia se defendido de acusações idênticas em 2004, dizendo que, "afinal, só existem 12 notas". Tais palavras devem ter soado arrogantes demais aos ouvidos de Frank Behrens, colunista do site Art Times, motivando-o a produzir um artigo aparentemente demolidor. O pior é que ele é tão persuasivo que quase nos convence de que está com a razão.
Mas eu também sou músico e entendi muito bem o que o meu colega quis dizer com “só existem 12 notas”. Quanto ao artigo, o seu autor pode até impressionar alguns desavisados com o seu domínio da Análise Combinatória, mas, para mim, está sofismando, ao tratar as “12 notas” como se fossem, por exemplo, os 12 signos do Zodíaco, e não os 12 semitons de uma escala musical. Fica até difícil de entender como um texto desses consegue ser aceito numa publicação especializada em artes.
Tudo o que Behrens disse seria válido se estivéssemos falando de loterias, não de música. Cada nota de uma composição, do ponto-de-vista tanto melódico como harmônico (e ele deveria saber disso), está ligada às demais por regras de contraponto, harmonia, etc. Só isso já seria o bastante para reduzir significativamente o número de maneiras com que elas podem ser combinadas sem perderem a coerência que nos faz percebê-las como música. Sem falar das restrições impostas pelo gênero escolhido para a composição, das quais o compositor não pode fugir sem que seja incompreendido pelo seu público.
Voltando ao ColdPlay, quero aproveitar um gancho deixado por Champion em sua defesa, ao dizer que “existem 12000 composições com a mesma sequência de acordes”. Ora, o leigo em música (o mesmo que acreditou no artigo de Frank Behrens), pode até achar que isso é o mesmo que dizer que “eu não sou o único a plagiar”. Eu não acredito que um músico de verdade vá deixar de entender o que ele quis dizer. Eu entendi. Não sei de que forma ele chegou a esse número, ou se é só força de expressão, mas o que ele quis dizer é que é certamente muito fácil encontrar músicas com a mesma sequência de acordes. È só procurar.
Mas, será que o problema se resumiria à sequência de acordes? Vou analisar, primeiro, o caso ColdPlay x Satriani, por ser o mais “evidente”.
Sequência de acordes:
Viva La Vida (Coldplay): C# - D# - G# - Fm
If I Could Fly (Satriani): Em7 – A – Dmaj7sus2 – Bmadd4
Os acordes são basicamente os mesmos (se transferidos para o mesmo tom, é lógico). No primeiro caso, os acordes correspondem à sequência de graus IV - V - I - VI. No segundo caso, a sequência é a mesma (omitindo-se as dissonâncias, para facilitar a comparação), com exceção do primeiro acorde, que, em vez de ser do IV grau, é do II grau. Essa única diferença, no entanto, eu acho que nem existe, uma vez que a sétima acrescentada ao acorde de II grau reforça ainda mais o seu caráter de sub-dominante, tornando-o praticamente igual ao do IV grau. Satriani coloca um temperinho, formando dissonâncias com notas emprestadas da própria melodia, mas a sequência harmônica é, basicamente, a mesma. É interessante notar que ele, na introdução de sua música, já usa um acorde Gmaj7, que é o acorde de IV grau acrescido de uma sétima, que, por sinal, antecipa a nota inicial da melodia em questão. Se esse acorde tivesse sido colocado no lugar do acorde de II grau, teria funcionado do mesmo jeito, e aí é que não teríamos como negar que as duas sequências harmônicas são idênticas.
Agora, as melodias:
Viva La Vida (Coldplay):
If I Could Fly (Satriani):
Assinalei em vermelho os trechos que eu considero iguais. As notas seguintes seguem caminhos diferentes: enquanto Satriani insiste nas bordaduras, terminando nas três notas sincopadas, o tema de Viva La Vida termina com movimentos bem diferentes. Mesmo assim, juntando as duas coisas, melodia e harmonia, fica tudo realmente muito parecido.
Se fosse somente pela sequência de acordes, eu diria que Satriani não poderia reclamar de nada, pois, como se alega no vídeo abaixo, ele não teria sido o primeiro a usá-la. Um grupo chamado “Enanitos Verdes” (quem???) já teria chegado na frente. Vejam:
É… não tenho dúvidas de que essa sequência de acordes é realmente bastante comum mesmo, mas o vídeo acima, que me desculpem, não ilustra tão bem assim essa tese.
No próximo post, direi o que penso a respeito daquele famoso caso Jorge Ben Jor x Rod Stewart, além de outros casos envolvendo artistas nacionais, como Roberto Carlos, Fagner e Tom Jobim. Quero falar, também, um pouco mais sobre sequências de acordes. Até breve.
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