25 julho 2009

O Milagre da Música




Já ouvi a Nona Sinfonia, quem sabe, algumas centenas de vezes, e mesmo assim até hoje não consigo deixar de me surpreender com ela. Não é somente a obra em si que me fascina, mas o fato de ter sido composta por alguém que não podia ouvir.

É costume dizer-se por aí que a surdez libertou Beethoven das amarras do convencional, do acadêmico. Mas isso só não basta para explicar o alto nível artístico atingido por ele em suas últimas obras.

Buscando uma teoria, pensei no seguinte: por volta dos quarenta anos de idade, Beethoven já tinha alcançado tamanho grau de musicalidade que poderia prescindir da audição normal para continuar compondo. Ou seja, ele podia, literalmente, “ouvir” as suas músicas em seu cérebro enquanto as criava.

Para o indivíduo comum, tal habilidade parece coisa do outro mundo. Isso contribui fortemente para cristalizar o conceito de que Beethoven era um ser humano especial. Se ele não tivesse existido (nem ficado surdo), esse tipo de habilidade talvez figurasse apenas no terreno das possibilidades. Mas Beethoven existiu, e já que uma teoria se faz necessária sempre que ocorre um fenômeno aparentemente inexplicável, aqui vai a minha.

Para começar, a genialidade de Beethoven não reside exatamente no fato de ele ter sido capaz de compor sinfonias mesmo depois de surdo, mas na qualidade de sua obra. Teria sido gênio ainda que houvesse tido uma audição perfeita. Há uma cena no filme Amadeus que bem ilustra o que estou dizendo. Antônio Salieri está na sala onde Mozart é aguardado para reger a sua própria obra, e resolve ler uma das partituras que encontra. Quem não se lembra de seu êxtase (só interrompido pela chegada de Mozart) enquanto sorvia as notas, os acordes, a música, enfim, que se formava em sua mente à medida que lia aquela partitura? Meus professores chamam isso de “ouvido interno” – uma habilidade que se adquire com o treino, ou com a simples vivência musical. Beethoven, Salieri, Mozart, Bach, e todo mundo que tenha passado pelo menos uns dez anos de sua vida escrevendo músicas suficientemente complexas, possui essa habilidade em maior ou menor grau.

Há vários estágios na evolução de um músico, e a capacidade de “ler à primeira vista” é, por exemplo, somente uma entre tantas que se pode adquirir já num estágio intermediário. Após muitos anos de prática, o artista que se acostuma a ler (e, principalmente, a escrever) partituras orquestrais, descobre que é capaz de realizar o que, para a maioria dos mortais, representa uma verdadeira proeza: “ouvir” uma peça orquestral só de olhar para a sua partitura.

Quase todos os dias surgem exemplos impressionantes do que o nosso cérebro é capaz de fazer. O pianista João Carlos Martins, por exemplo, recuperou os movimentos de sua mão direita mesmo após os danos sofridos pela região de seu cérebro responsável por aquela parte do corpo (causados por uma coronhada que um bandido lhe aplicou na cabeça durante um assalto na Bulgária), graças a sessões de “reprogramação cerebral”, que transferiram para uma outra região do seu cérebro funções que haviam se perdido com o tecido lesionado.

Pois é, compor músicas sem poder ouví-las deve ser mais ou menos como pintar quadros sem poder vê-los, não é mesmo? O que dizer, então, de Esref Armagan, que é cego de nascença e pinta melhor do que eu mesmo conseguiria?

Este artigo da Science Daily trata da descoberta de que os surdos analisam as vibrações sentidas pelo corpo usando, inconscientemente, a mesma região do cérebro normalmente dedicada à audição. Isso significa que, de fato, um surdo pode chegar a “ouvir” uma música através das suas vibrações, e não simplesmente sentí-las tatilmente.

Quero terminar este post oferecendo um brinde a vocês, que gostam tanto quanto eu de Beethoven. Sugiro que ouçam (e vejam, naturalmente) o vídeo abaixo: trata-se da mesma gravação histórica da Nona Sinfonia de Beethoven que eu ouvi há 27 anos atrás, sob a regência de Furtwangler (este vídeo é somente o primeiro de quatro – vale a pena ouvir todos). E não deixe de ouvir, também, essa outra maravilha que eu coloquei a seguir. É de outro grande compositor – Lully, e me lembra demais a época em que eu fiz parte de um grupo de música antiga. Um brinde à Música.








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