08 julho 2009

O Plágio e a Criatividade (Parte 6)





Contra todas as "evidências",
Não há plágio em Nuvens Douradas

Nos gráficos abaixo (do tipo conhecido como “Piano-roll”), as notas de uma melodia são representadas pelos tracinhos em “negrito”. Cada coluna corresponde a um compasso, e há uma representação do teclado de um piano, à esquerda, servindo como referência para as linhas horizontais.

Obs: Para melhor entendimento deste artigo, seria bom você ouvir ambas as músicas. Se ainda não as tem, ouça as versões MIDI que eu mesmo preparei, e das quais eu extraí os gráficos abaixo. Para isso, faça o Download de Nuvens Douradas e de Prece, clicando na parte de Downloads, na coluna direita desta página.

Observe os gráficos (clique neles para uma imagem maior):

1 . Nuvens Douradas (Tom Jobim):

Gráfico de Nuvens Douradas

2 . Prece (Vadico e Marino Pinto):

Gráfico de Prece

Olhando de relance, ambos parecem tratar-se do mesmo gráfico. Neles, há somente os temas que estamos comparando, sem os acordes. Um matemático diria que há muito mais semelhanças do que diferenças entre eles. Eu, que sou bom de conta, mas tenho também a visão de um músico, diria que, na verdade, é o contrário: existem muito mais diferenças do que semelhanças entre os dois temas acima. Basta que pensemos musicalmente, e não matematicamente (afinal, apesar de existir muita matemática na Música, MÚSICA NÃO É MATEMÁTICA).

Nesses gráficos, além das notas (em negrito), temos também:
. retângulos cor-de-laranja, delimitando, em cada tema, um motivo (ver Fraseologia) e sua repetição;
. setas vermelhas, indicando o ponto em que o motivo irá terminar descendo;
. uma seta azul, indicando o movimento ascendente de um motivo para a sua repetição;
. uma elipse cor-de-rosa, indicando a terceira exposição do motivo em cada tema.

Eis alguns dos possíveis argumentos a favor da tese de que Jobim plagiou Vadico, e os seus respectivas pontos fracos:

Argumento 1 . Os motivos caracterizam-se por começarem com uma nota que se repete durante os dois primeiros compassos:
Resposta: E daí? Tom Jobim conhecia bem a música de Vadico, o que não o proibia (como não proíbe ninguém até hoje) de ter composto um tema só seu começando também por notas repetidas - ainda que Vadico tivesse sido o primeiro a fazê-lo (o que, de fato, não foi, porque isso já é feito há séculos, desde os primórdios da Música).

Argumento 2 . Os motivos caracterizam-se por terem, em seu terceiro compasso, uma nota curta (seta vermelha) que desce para uma mais longa (seta vermelha):
Resposta: Até aí, tudo bem, porque, em Nuvens Douradas, essa nota curta desce quatro semitons, enquanto em Prece ela desce três.

Argumento 3 . Os motivos têm a mesma estrutura (retângulo cor-de-laranja):
Resposta: Ainda que Vadico tenha sido o primeiro ser humano na face da Terra a usar esse tipo de estrutura numa música popular (ou mesmo erudita), ela não pode, em hipótese alguma, ser considerada de sua propriedade. Ouça, no vídeo abaixo, o trecho que começa exatamente aos 1:06:



Não estaria aí a origem do tema usado por Vadico? Sim, não há como negar. E ele o fez de forma consciente, querendo conferir uma certa aura religiosa à sua composição. Fez sabendo que não havia nada de mais. Ora, se ele pode, por que Tom Jobim também não pode?

Agora, olhando as setas azuis:

Argumento 4 . Em ambas as composições, há um movimento de subida entre o motivo e sua repetição:
Resposta: No caso de Nuvens, essa subida é de três semitons, enquanto em Prece é de seis semitons.

Agora, olhando para as elipses cor-de-rosa:

Argumento 5 . Os motivos dentro das elipses, em ambas as músicas, são idênticos:
Resposta: De fato, os motivos são iguais, mas as harmonias (omitidas nos gráficos), não. Em Nuvens, ambos os compassos estão em modo maior (Gmaj7 e G7(#11)), enquanto em Prece estão em modo menor.

Para finalizar, e já que nada do que vai acima é suficiente para caracterizar o plágio, poderíamos tentar mais este argumento:

6 . Os dez primeiros compassos de ambas as obras têm estrutura muito semelhante:
Resposta: Faça-me o favor, aí já é demais. Em ambas as músicas, há seis mudanças de nota nesse trecho, e, embora elas apontem para a mesma direção, são por intervalos diferentes.

Já disse antes que não acho Nuvens Douradas sequer parecida com Prece. Faltava-me, entretanto, uma explicação para achá-las tão diferentes. Uma parte dessa explicação está em tudo o que eu disse acima. Mas há algo que distingue ainda mais uma da outra: as harmonias.

A rigor, quanto mais uma sequência de notas nos sugerir uma harmonia, mais “melodiosa” nos parecerá. Há inúmeros temas famosos que se enquadram nessa definição, como o da Nona Sinfonia, por exemplo, que se impõe por si mesmo, ainda que não haja acompanhamento algum. Uma vez ou outra, alguém resolve apresentar novas harmonizações para velhos temas (Bach costumava reaproveitar um mesmo tema em diversos corais, cuidando, apenas, de lhes dar harmonizações diferentes). Em princípio, um tema pode ser rearmonizado de diversas maneiras. Isso é mais fácil para temas que não nos sugerem harmonia alguma, e mais difícil para temas já baseados em alguma sequência de acordes.

Quando se usa uma melodia composta de notas que não nos sugerem nenhuma harmonia específica, cria-se uma espécie de ambiguidade harmônica que deve ser compensada por uma boa sequência de acordes. Imagine, por exemplo, de quantas maneiras se pode harmonizar o tema de “Samba de uma Nota Só”? Os temas de Prece e Nuvens Douradas caem mais ou menos nesta categoria. Por si sós, não têm tanto apelo. A harmonização é que lhes dá personalidade, transformando-os em verdadeiras “melodias”.

Analisando os dois compassos iniciais de ambos os temas, em Prece vemos que há somente dois acordes, um para cada compasso, ao passo que em Nuvens há quatro (Dmaj7(9), D6, Dmaj7 e Dmaj7(#5)). Além disso, é interessante observar o papel desempenhado pelas “melodias internas” (decorrentes das vozes intemediárias dos acordes, que se destacam frente à imobilidade das notas do tema principal) como um fator a mais que serve para diferenciar as duas obras.

Há, ainda, algo muito interessante a acrescentar sobre a harmonização de Nuvens Douradas: ela tem elementos típicos da música impressionista. Não se trata simplesmente de herdar técnicas desenvolvidas pelo jazz, que também bebeu na mesma fonte (e que também influenciou a própria Bossa Nova), mas de buscar soluções harmônicas diretamente nas origens (em Debussy, especificamente). Em Prece, não há nada disso: a harmonização é bem mais tradicional.

Os primeiros compassos de cada composição, como vimos acima, já contém mais diferenças do que semelhanças (musicalmente falando). Como se isso não bastasse, há também que se considerar a forma, isto é, a estrutura horizontal da obra. O resultado é que, nos compassos seguintes, um abismo começa a se formar entre as duas músicas. E é também onde está, na minha opinião, o melhor de Nuvens Douradas.

Para começar, Vadico encerra o tema com uma cadência. Depois disso, não há nenhum material novo - apenas a repetição do mesmo tema. Jobim, por outro lado, usa a cadência do seu tema como preparação para uma espécie de reexposição surpreendentemente natural do mesmo. Essa reexposição é marcada não somente por ser numa tonalidade distante (vai de Re Maior para Mi bemol Maior) mas, também, por se caracterizar pelo aparecimento de pequenas "novidades". Depois disso, aí sim, uma ponte modulatória de extremo bom gosto nos leva de volta ao tema inicial, em Re Maior. Dessa vez, Jobim parece ter se valido da Forma-Sonata, porque a repetição do tema não ocorre mais com a tal modulação para Mi Bemol (embora aquelas novidades reapareçam aqui em Re Maior mesmo, o que dá à obra muita unidade e concisão).

Prece também tem suas próprias sutilezas. Os acordes de seu início, por exemplo, nos remetem ao clima de outra composição de Vadico, Feitio de Oração (em parceria com Noel Rosa), e aos tempos de Bach (primeiros acordes da Aria na Corda Sol, por exemplo).


E A IMAGEM LÁ NO ALTO?

Antes de terminar, vale aqui uma explicação para a imagem lá no alto deste artigo - que, aparentemente, não tem nada a ver com o que eu disse até agora. É que o plágio, como todos sabem, não é uma exclusividade da Música. Pode ocorrer em qualquer modalidade de manifestação artística. Em tese, portanto, pode existir também nas Artes Plásticas.

Mas ninguém ouve falar em plágio de um quadro ou de uma escultura, não é mesmo? Por que será?

A imagem da esquerda é da Granduca Madonna, quadro pintado por Rafael Sanzio. Já as imagens do centro e da direita são as duas versões conhecidas da Virgem do Fuso, cujo original é de Leonardo da Vinci. Calma, não se trata de falsificações, mas sim de cópias feitas por seus alunos, uma vez que o original tinha sido feito apenas para fins de devoção privada do grande mestre. De qualquer forma, elas servem muito bem para o que eu quero dizer.

Ambas as obras (a Granduca Madonna e a Virgem do Fuso) foram pintadas na mesma época: entre 1500 e 1510. Ora, já que o tema de ambas é exatamente o mesmo, era para vermos aí alguma espécie de plágio. Por que será que isso nem nos passa pela cabeça? Talvez porque este seja um daqueles temas considerados, por assim dizer, de domínio público. De fato, há temas que, em geral, estão para as Artes Plásticas assim como os gêneros musicais estão para a Música. Temos, assim, as Naturezas-Mortas, as Marinhas, etc.

Nas Artes (e na Música, especificamente), esbarramos o tempo todo com fórmulas e arquétipos. O tema da Madona com o menino Jesus em seu colo é somente um desses vários temas recorrentes na história das Artes Plásticas. De tanto vermos quadros sobre o mesmo assunto, este se transforma em gênero, e passa a não interferir negativamente em nossa avaliação de uma obra de arte. Não se olha mais para o tema. Olha-se, isto sim, para a forma como ele é desenvolvido. Analisamos os seus detalhes, tais como os elementos acrescentados por conta e risco do próprio artista (como aquele fuso para o qual o menino Jesus olha com tanto interesse, na obra de Da Vinci), ou as características técnicas da obra, como as proporções, o jogo de luz e sombra, as cores, as pinceladas, etc.

É provável que seja este o motivo pelo qual não se fala em plágio nas Artes Plásticas. Mas fala-se, sim, em falsificação (o que faz muito sentido na Pintura, e não tanto na Música).





MONALISA x MONALIZA


O que há de realmente valioso na Monalisa, o mais famoso quadro de Da Vinci? Por que ela é tão admirada? Por sua originalidade? Se sim, onde estaria essa originalidade? No tema? Bom, mas o tema é simples: uma mulher com um sorriso indefinível e uma paisagem absolutamente secundária ao fundo. Quantos não fizeram o mesmo antes? Imaginemos, então, que, meses antes, alguém tivesse pintado o quadro abaixo:



Qual seria a atitude do tal “artista” depois de se deparar com o quadro de Da Vinci?

OPÇÃO 1: Se jogaria aos seus pés, dizendo: “Mestre, ensine-me a pintar como você!”

OPÇÃO 2: Diria “Assim que bati o olho, percebi que fui plagiado!”, e o processaria.

A resposta a essa pergunta vai depender de ele ser um verdadeiro apreciador da Arte (como deve ser um musicista, no caso específico da Música) ou um artista frustrado e rancoroso.


PURA MÚSICA

Voltando ao que nos interessa, Nuvens Douradas é, na minha opinião, uma das melhores coisas que já se fez na história da Música Brasileira. É uma peça eminentemente instrumental. Não precisa de letra: é música pura. Para mim, se colocarem letra, estraga (embora esta seja somente uma opinião). Para mim, é Música para se ouvir em silêncio, com muita atenção. E ela tem, realmente, muitos detalhes que merecem a nossa atenção. Ouça os acordes. Imagine se é possível mudar alguma nota de lugar, ou mesmo suprimí-la. Cada nota ali é importante. Eu acho que seria um desperdício dar a tais acordes o papel de meros coadjuvantes, como no acompanhamento de um solista, por exemplo. Eles merecem, sim, o papel principal.

Eu fico realmente em dúvida quanto à sensibilidade artística dos que enxergam algum plágio nesta música. Lamento que pessoas do próprio meio tenham tido a coragem de levar adiante tal acusação, cujo único efeito foi o de fazer com que Jobim evitasse de tocar essa música em público. Uma monumental injustiça, e uma grande perda para os apreciadores da boa música.

DEMAIS ARTIGOS DESTA SÉRIE: 1 - 2 - 3 - 4 - 5





Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

O próprio Tom Jobim reconhecia que tinha música que não precisava de letra.
Pena não sabermos a opinião dele sobre 'Nuvens dourada'.