19 maio 2011

Lang Lang: do tormento ao triunfo




Antes de ler o resto deste post, talvez fosse bom assistir aos vídeos abaixo. Eles dão uma mostra do talento de Lang Lang, jovem pianista chinês que já está sendo apontado como a maior novidade surgida na música clássica nas últimas décadas (será exagero?). Depois dos vídeos (não deixe de ver o terceiro, em que ele toca um estudo de Chopin segurando uma laranja com a mão direita), há a minha tradução da entrevista que ele concedeu a Ivan Hewett, do The Telegraph.









O pianista chinês Lang Lang é a maior sensação das últimas décadas na música clássica. Às vésperas de se estabelecer em Londres, ele conversa com Ivan Hewett.

É mais um dia cheio na agenda lotadíssima de Lang Lang. Vestindo um terno Armani prateado, eis que ele surge no lobby do hotel em que se hospeda em Paris, recém-saído de uma reunião para tratar de sua fundação global para o incentivo à prática de música entre crianças (essa tem sido a sua obsessão, refletida inclusive nos encontros que pretende manter em sua futura estadia em Londres com grupos de jovens pianistas). Ele pede um chá, joga-se numa cadeira, e lembra, rindo, que nosso encontro estava se dando num “primeiro de abril”. Existe uma tradição similar na China? – perguntei.

“Não, não existe. E a primeira vez que ouvi falar disso foi quando cheguei à América. Mas eu tinha apenas 14 anos quando me mudei para lá. Metade da minha vida, portanto, eu vivi na América. É natural que eu já tenha assimilado algumas de suas tradições”.

O longo processo de adaptação aos hábitos ocidentais começou em 1997, quando Lang Lang ganhou uma bolsa de estudos na Curtis Institute, na Filadélfia. Essa foi sua primeira viagem para longe de casa? “Não, eu já havia estado na Alemanha um ano antes, para uma competição entre pianistas. Lembro-me de ter andado pelas ruas, visto aqueles prédios enormes e antigos, e de ter me impressionado com a solidez deles. Nós também temos prédios muito antigos na China, mas são todos feitos de madeira, de modo que, para mim, aquilo era uma grande novidade”.

Você já conhecia algo sobre a Europa nessa ocasião? Seus olhos brilharam. “Claro! Eu era totalmente maluco por futebol. Por causa disso, sabia os nomes de várias cidades britânicas, como Manchester e Liverpool, e italianas, como Perugia. Eu costumava assistir aos jogos pela tv a cabo, desde que a implantaram no início dos anos 1990”.

Que aventura não deve ter sido aquela viagem para um garoto que vinha de uma cidade quente, poeirenta e provinciana da China, onde acompanhava o futebol pela tv, tocando piano apenas “para se divertir”, como ele mesmo diz. E então veio a sua mudança para Pequim em busca de bons professores particulares de piano, na companhia de um pai ao mesmo tempo amoroso e tirânico - e convicto de que seu filho poderia se tornar o melhor pianista da China.

Sua primeira professora costumava humilhá-lo. “Ela me deixou arrasado”, disse Lang Lang com simplicidade, “disse-me que eu não tinha talento”. Existiam também discussões violentíssimas com seu pai, que o acusava de preguiçoso. A pressão era tanta que o garoto chegava ao ponto de esmurrar as paredes.

Mas um dia ele encontrou um professor que lhe devolveu a esperança. Depois da admissão no Central Conservatoire, viriam mais alguns anos de trabalho árduo. E então, ao vencer um concurso para jovens pianistas no Japão, ganhou uma bolsa de estudos na Curtis Institute.

Mas a verdadeira reviravolta em sua vida aconteceu num belo dia de 2000, quando teve que substituir às pressas um pianista que iria tocar o Concerto de Tchaikovsky em Chicago. Aquele foi o momento da revelação. Nos dez anos que se seguiram, Lang Lang tornou-se o maior fenômeno já surgido na música clássica em décadas. Tocou nos Jogos Olímpicos de Pequim para uma audiência de cinco bilhões de pessoas, seu rosto foi estampado em tablóides e revistas especializadas fazendo propaganda de marcas famosas como Armani e Audi, além de ter tocado em estádios ao lado de Herbie Hancock.

Quanto ao mundo da música clássica, esta se prostrou a seus pés. Lang Lang tem tocado com todas as grandes orquestras e em todas as mais consagradas salas de concerto.

Tanto tormento e tanto triunfo concentrados em tão poucos anos de vida deveriam fazê-lo transparecer algum tipo de cicatriz emocional. Mas não: assim como no momento em que nos fala de futebol, Lang Lang também vibra como um garoto irrequieto ao falar de Michael Jackson. Sua atração pelo showbiz nos remete ao início do século 19, quando não havia ainda uma linha divisória entre o simples entretenimento e a música de alto nível.

“É claro que a música clássica exige o mais alto grau de seriedade, mas por que não podemos também nos divertir com ela?”, disse. “A música clássica está mais próxima do meu coração, mas eu também adoro a música pop, e, para mim, artistas populares realmente grandes como Elvis e Michael Jackson alcançaram o mais alto nível artístico. Tento trazer esse conceito para dentro da música clássica quando me dirijo a uma platéia mais jovem, mesmo porque tenho a idade deles e, por isso, conseguimos ver o mundo de uma maneira parecida.”

Não por acaso, Lang Lang tem uma predileção por Franz Liszt, o maior showman entre todos os grandes nomes da música do século 19. Mas será que, para ele, Liszt foi um compositor sério? “Ele tinha um lado extravagante, mas também um lado sério, e eu gosto dessa combinação. Sinto-me próximo de Liszt justamente por ele não ter sido um “deus” como Mozart, que se aproximava da perfeição em tudo que fazia. Além disso, Liszt foi um ser humano excepcional. Ajudou muita gente, como Chopin e Wagner”.

Por outro lado, Lang Lang admite que música séria e sem extravagâncias também possa estar associada a valores especiais e apresentar seus próprios desafios. “O problema é que, com dificuldades puramente técnicas, você percebe quando as superou,” diz. “Com dificuldades musicais, não. Às vezes você vence uma batalha durante o seu estudo em casa, mas no palco a guerra continua”.

Ele também chegou à conclusão de que, além de talento e muito trabalho, existe um terceiro fator, que, por sua natureza, deve ser levado em consideração. “Eu sempre dou o melhor de mim, mas isso não significa que todo concerto será a minha melhor performance, mesmo porque há peças que exigem anos para serem perfeitamente assimiladas”.

Tais como? “O Primeiro Concerto de Brahms. Só depois da oitava performance eu senti que havia chegado perto do ideal. Ou a Sonata Hammerklavier de Beethoven, que ainda não toquei em público porque preciso adquirir maior confiança. O movimento lento é muito difícil porque há uma longa sequência em que se deve usar o pedal, mas não muito, para não soar tão romântico como em Chopin, por exemplo. Do contrário, a tensão desaparece”.

Vivendo há tanto tempo na América, será que ele já se sente ocidentalizado? “Bem, eu não estou bem certo disso. É verdade que me sinto em casa quando estou na Filadélfia, mas há coisas na cultura chinesa que me fazem falta. É impressionante como tudo aqui funciona na base do crédito. Penso que a educação nos níveis superiores seja boa, mas acho que nos níveis elementares deveria existir menos diversão e mais disciplina e respeito”.

Essa conversa já está tomando um rumo meio “confucionista”. E o que ele pensa a respeito de Amy Chua, a “mãe tigresa” que causou tanta controvérsia nos EUA ao lançar um livro que fala da disciplina draconiana chinesa? “Bem, aquilo foi um exagero. E todo exagero é ruim”.

Mas aqui ele faz uma pausa para, em seguida, sair-se com um arremate surpreendente. “Mas, na música, não se pode ficar no meio-termo. Se a música diz “presto”, você não pode fazer “moderato”. Se você fica no meio-termo, musicalmente falando, você vira uma espécie de burocrata”, disse, em tom subitamente mais inflamado.

Equilíbrio na vida, intensidade extrema na arte – este parece ser o lema de Lang Lang. Criadores visionários e audazes são certamente os seus preferidos.

“Neste exato momento, estou lendo um bocado de coisas sobre Picasso, que foi um gigante. Necessito de gigantes como Beethoven e Picasso me mostrando o caminho a seguir. Na música clássica, temos alguns compositores interessantes, que empregam conceitos inteligentes em suas peças, tais como matemática, sorte ou coisa assim.

“Dos compositores contemporâneos, entretanto, não existe ainda nenhum que fale à sociedade como um todo. Espero que tal compositor surja algum dia, no futuro”.

(fonte: The Telegraph)

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